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33 / O exorcismo do terror existencial por William Peter Blatty / Setembro 2020

Depois de escrever uma série de comédias para o grande-ecrã, William Peter Blatty apanhou-se sem trabalho e decidiu tentar a sorte noutro registo. Inspirado pela sua própria educação na ordem da Companhia de Jesus, e em relatos de um exorcismo que terá ocorrido uns anos antes, escreveu O Exorcista, o romance onde explorava a possibilidade da existência de uma dimensão espiritual de inteligência, e que se tornaria um sucesso de vendas. Na sequência da adaptação ao cinema pela mão de WIlliam Friedkin em 1973, tornou-se também um verdadeiro fenómeno cultural. Além das intermináveis filas à porta dos cinemas, a natureza chocante de O Exorcista tocou no nervo das instituições religiosas e deixou crentes e não crentes à beira de um ataque de nervos, com relatos de vómitos e desmaios nas exibições originais. Com experiência em documentários, o realizador abordou este material fantástico com um olhar clínico e realista, tão directo no retrato de uma invasiva análise clínica como nos horrores da carne e da mente infligidos a (e por) uma inocente criança.

Tal como a prensa, na emergência da modernidade, intensificou o medo ao Diabo, figura que alcançou uma difusão jamais obtida anteriormente, também O Exorcista reacendeu o fascínio pela demonologia e o temor perante o anjo querubim expulso dos Céus por ter criado uma rebelião de anjos contra Deus com o intuito de tomar-lhe o trono, introduzindo no léxico da sétima arte o conceito de “exorcismo”, praticamente ausente do seu historial até então. Com o passar do tempo, a relevância desta obra nunca esmoreceu, ajudada pela nova versão director’s cut chegada a Portugal em 2001, ao contrário dos inúmeros sucedâneos, bem como das próprias sequelas e prequelas que nunca conseguiram recapturar a força do original. Isto apesar de o próprio William Peter Blatty ter revisitado os temas tão caros à sua obra em O Crepúsculo dos Heróis, um apontamento com ligações curiosas a O Exorcista com o título original The NinthConfiguration,e Legion, o livro que dava continuidade à história através de personagens anteriormente secundárias e de uma surpreendente e inesperada aparição, adaptado ao grande-ecrã em 1990 como O Exorcista III numa atribulada produção que não agradou a gregos nem a troianos.

Antes disso, Exorcista II – O Herege, tentativa de 1977 por John Boorman, revelou-se um enorme desastre, inversamente proporcional ao sucesso artístico e comercial do filme a que dava continuidade, apostando em recuperar Linda Blair como Reagan, a menina possuída anteriormente, e em aludir ao passado do Padre Merrin, a personagem secundária tornada central pelo carisma de Max Von Sydow. Mais tarde, já em 2005, e espelhando os erros cometidos com Legion, a prequela realizada por Paul Schrader que pretendia novamente capitalizar o potencial da história do Padre Merrin em África mencionada no filme original foi rejeitada pela produção depois de praticamente terminada. Dominion foi assim engavetado, Schrader despedido e um novo filme, Exorcista – O Princípio, rodado por Renny Harlin. Stellan Skarsgård tornou-se assim protagonista de um caso raríssimo no cinema que nos proporcionou duas visões diferentes do mesmo material por dois autores radicalmente distintos.

Se alguma dúvida houvesse do impacto de O Exorcista, do seu singelo retrato de terror existencial e de desolação espiritual, basta observar o panorama do cinema de terror nas últimas décadas, recheado de demónios, possessões e exorcismos numa tentativa de recuperar a irrepetível e inquietante qualidade daquele filme de 1973 que tão assustadoramente nos fez lembrar que a perene batalha entre as forças da luz e os agentes da escuridão se trava dentro de todos nós.

António Araújo, Setembro de 2020

Fontes primáriasLiteratura

Blatty, William Peter (1971) The Exorcist. New York City, NY: Harper & Row ;

Blatty, William Peter (1983) Legion. New York City, NY: Simon & Schuster.

Cinema

O Exorcista (The Exorcist, William Friedkin, 1973);

O Exorcista II: O Herege (Exorcist II: The Heretic, John Boorman, 1977);

O Exorcista III (The Exorcist III, William Peter Blatty, 1990);

Exorcista – O Princípio (Exorcist: The Beginning, Renny Harlin, 2004);

Dominion: A Prequela de o Exorcista (Dominion: Prequel to the Exorcist, Paul Schrader, 2004).

Televisão

O Exorcista (The Exorcist, Série de TV, 2016-2018, 2 temporadas de 10 episódios cada) .

Fontes secundáriaLiteratura

Blatty, William Peter (1966) Twinkle, Twinkle, “Killer” Kane!. New York City, NY: Harper & Row ;

Blatty, William Peter (1978) The Ninth Configuration. New York City, NY: Harper & Row.

Cinema

O Crepúsculo dos Heróis (The Ninth Configuration,  William Peter Blatty, 1980).

Outras referênciasCinema

A Feitiçaria Através dos Tempos (Häxan, Benjamin Christensen, 1922);

Fausto (Faust: Eine deutsche Volkssage, F.W. Murnau, 1926);

The Seventh Victim (Mark Robson, 1943);

O diabo à solta (The Devil Rides Out, Terence Fisher, 1968);

A Semente do Diabo (Rosemary’s Baby, Roman Polanski, 1968);

O Génio do Mal (The Omen, Richard Donner, 1976);

Possessão (Possession, Andrzej Zulawski, 1981);

O Ente Misterioso (The Entity, Sidney J. Furie, 1982)

Angel Heart – Nas Portas do Inferno (Angel Heart, Alan Parker, 1987);

O Príncipe das Trevas (Prince of Darkness, John Carpenter, 1987);

A Seita do Mal (The Believers, John Schlesinger, 1987);

A Queda (Fallen, Gregory Hoblit, 1998);

Estigma (Stigmata, Rupert Wainwright, 1999);

O Exorcismo de Emily Rose (The Exorcism de Emily Rose, Scott Derrickson, 2005);

O Último Exorcismo (The Last Exorcism, Daniel Stamm, 2010)

O Ritual (The Rite, Mikael Håfström, 2011);

The Quiet Ones – Experiência Sobrenatural (The Quiet Ones, John Pogue, 2014)

A Possessão (The Taking of Deborah Logan, Adam Robitel, 2014);

The Devil’s Candy (Sean Byrne, 2015);

A Bruxa (The VVitch: A New-England Folktale, Robert Eggers, 2015);

The Devil and Father Amorth (William Friedkin, 2017);

Hereditário (Hereditary, Ari Aster, 2018);

Saint Maud (Rose Glass, 2019).

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