Depois de escrever uma série de comédias para o grande-ecrã, William Peter Blatty apanhou-se sem trabalho e decidiu tentar a sorte noutro registo. Inspirado pela sua própria educação na ordem da Companhia de Jesus, e em relatos de um exorcismo que terá ocorrido uns anos antes, escreveu O Exorcista, o romance onde explorava a possibilidade da existência de uma dimensão espiritual de inteligência, e que se tornaria um sucesso de vendas. Na sequência da adaptação ao cinema pela mão de WIlliam Friedkin em 1973, tornou-se também um verdadeiro fenómeno cultural. Além das intermináveis filas à porta dos cinemas, a natureza chocante de O Exorcista tocou no nervo das instituições religiosas e deixou crentes e não crentes à beira de um ataque de nervos, com relatos de vómitos e desmaios nas exibições originais. Com experiência em documentários, o realizador abordou este material fantástico com um olhar clínico e realista, tão directo no retrato de uma invasiva análise clínica como nos horrores da carne e da mente infligidos a (e por) uma inocente criança.
Tal como a prensa, na emergência da modernidade, intensificou o medo ao Diabo, figura que alcançou uma difusão jamais obtida anteriormente, também O Exorcista reacendeu o fascínio pela demonologia e o temor perante o anjo querubim expulso dos Céus por ter criado uma rebelião de anjos contra Deus com o intuito de tomar-lhe o trono, introduzindo no léxico da sétima arte o conceito de “exorcismo”, praticamente ausente do seu historial até então. Com o passar do tempo, a relevância desta obra nunca esmoreceu, ajudada pela nova versão director’s cut chegada a Portugal em 2001, ao contrário dos inúmeros sucedâneos, bem como das próprias sequelas e prequelas que nunca conseguiram recapturar a força do original. Isto apesar de o próprio William Peter Blatty ter revisitado os temas tão caros à sua obra em O Crepúsculo dos Heróis, um apontamento com ligações curiosas a O Exorcista com o título original The NinthConfiguration,e Legion, o livro que dava continuidade à história através de personagens anteriormente secundárias e de uma surpreendente e inesperada aparição, adaptado ao grande-ecrã em 1990 como O Exorcista III numa atribulada produção que não agradou a gregos nem a troianos.
Antes disso, Exorcista II – O Herege, tentativa de 1977 por John Boorman, revelou-se um enorme desastre, inversamente proporcional ao sucesso artístico e comercial do filme a que dava continuidade, apostando em recuperar Linda Blair como Reagan, a menina possuída anteriormente, e em aludir ao passado do Padre Merrin, a personagem secundária tornada central pelo carisma de Max Von Sydow. Mais tarde, já em 2005, e espelhando os erros cometidos com Legion, a prequela realizada por Paul Schrader que pretendia novamente capitalizar o potencial da história do Padre Merrin em África mencionada no filme original foi rejeitada pela produção depois de praticamente terminada. Dominion foi assim engavetado, Schrader despedido e um novo filme, Exorcista – O Princípio, rodado por Renny Harlin. Stellan Skarsgård tornou-se assim protagonista de um caso raríssimo no cinema que nos proporcionou duas visões diferentes do mesmo material por dois autores radicalmente distintos.
Se alguma dúvida houvesse do impacto de O Exorcista, do seu singelo retrato de terror existencial e de desolação espiritual, basta observar o panorama do cinema de terror nas últimas décadas, recheado de demónios, possessões e exorcismos numa tentativa de recuperar a irrepetível e inquietante qualidade daquele filme de 1973 que tão assustadoramente nos fez lembrar que a perene batalha entre as forças da luz e os agentes da escuridão se trava dentro de todos nós.
António Araújo, Setembro de 2020
Fontes primáriasLiteratura
Blatty, William Peter (1971) The Exorcist. New York City, NY: Harper & Row ;
Blatty, William Peter (1983) Legion. New York City, NY: Simon & Schuster.
Cinema
O Exorcista (The Exorcist, William Friedkin, 1973);
O Exorcista II: O Herege (Exorcist II: The Heretic, John Boorman, 1977);
O Exorcista III (The Exorcist III, William Peter Blatty, 1990);
Exorcista – O Princípio (Exorcist: The Beginning, Renny Harlin, 2004);
Dominion: A Prequela de o Exorcista (Dominion: Prequel to the Exorcist, Paul Schrader, 2004).
Televisão
O Exorcista (The Exorcist, Série de TV, 2016-2018, 2 temporadas de 10 episódios cada) .
Fontes secundáriaLiteratura
Blatty, William Peter (1966) Twinkle, Twinkle, “Killer” Kane!. New York City, NY: Harper & Row ;
Blatty, William Peter (1978) The Ninth Configuration. New York City, NY: Harper & Row.
Cinema
O Crepúsculo dos Heróis (The Ninth Configuration, William Peter Blatty, 1980).
Outras referênciasCinema
A Feitiçaria Através dos Tempos (Häxan, Benjamin Christensen, 1922);
Fausto (Faust: Eine deutsche Volkssage, F.W. Murnau, 1926);
The Seventh Victim (Mark Robson, 1943);
O diabo à solta (The Devil Rides Out, Terence Fisher, 1968);
A Semente do Diabo (Rosemary’s Baby, Roman Polanski, 1968);
O Génio do Mal (The Omen, Richard Donner, 1976);
Possessão (Possession, Andrzej Zulawski, 1981);
O Ente Misterioso (The Entity, Sidney J. Furie, 1982)
Angel Heart – Nas Portas do Inferno (Angel Heart, Alan Parker, 1987);
O Príncipe das Trevas (Prince of Darkness, John Carpenter, 1987);
A Seita do Mal (The Believers, John Schlesinger, 1987);
A Queda (Fallen, Gregory Hoblit, 1998);
Estigma (Stigmata, Rupert Wainwright, 1999);
O Exorcismo de Emily Rose (The Exorcism de Emily Rose, Scott Derrickson, 2005);
O Último Exorcismo (The Last Exorcism, Daniel Stamm, 2010)
O Ritual (The Rite, Mikael Håfström, 2011);
The Quiet Ones – Experiência Sobrenatural (The Quiet Ones, John Pogue, 2014)
A Possessão (The Taking of Deborah Logan, Adam Robitel, 2014);
The Devil’s Candy (Sean Byrne, 2015);
A Bruxa (The VVitch: A New-England Folktale, Robert Eggers, 2015);
The Devil and Father Amorth (William Friedkin, 2017);
Hereditário (Hereditary, Ari Aster, 2018);
Saint Maud (Rose Glass, 2019).